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Artigos - 22/07/20

A escalada do conflito entre Fisco e contribuintes e a ADI 6.399

O fim do voto de qualidade no Carf trouxe à tona a polarização praticada nas relações
entre o Fisco e o contribuinte. Num extremo, afirma-se que a medida trará enorme
prejuízo ao Erário, sendo de interesse de sonegadores de todos os calibres incomodados
pelo avanço de medidas sanitizadoras como a Operação Lava-Jato. Do outro, aponta-se
a injustiça de um sistema de julgamento que permite a uma das partes litigantes definir
o resultado, no caso de empate.

Nesse contexto, o procurador-geral da República ajuizou a ADI 6.399, com o objetivo de
ver declarada a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 13.988/2020, que, ao inserir o
art. 19-E na Lei 10.522/2002, determinou ser inaplicável o voto de qualidade em
caso de empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência
do crédito tributário. Referida ação foi distribuída à relatoria do Ministro Marco
Aurélio.
Em resumo, o PGR sustenta vício formal, na medida em que o presidente da República
teria competência exclusiva de iniciativa para propor leis que versem sobre a disciplina
da organização e funcionamento dos órgãos da administração pública (arts. 61, § 1º, II,
“e”, e 84, VI da Constituição de 1988). Afirma-se também que o critério de desempate
em favor do Estado, em prejuízo do indivíduo, é legítimo.
A alegação de vício formal é controversa. Primeiramente, não se trata de matéria
estranha. A proibição para inclusão de temas dissociados das matérias em debate no
Congresso tem por objetivo impedir que questões importantes e polêmicas passem
batido pelo controle dos parlamentares. É o que ocorria com as históricas “caudas
orçamentárias” e “jabutis”, com os quais conseguia-se aumentar despesas e distribuir
privilégios ocultos em projetos nominalmente de menor importância, como nominação
de ruas.
Ademais, embora não seja impossível que o STF acabe declarando inconstitucional o
dispositivo, o parâmetro de controle invocado pelo PGR é controverso. O voto de
qualidade insere-se nos critérios de controle de validade do crédito tributário e,
portanto, é muito mais afeito ao processo tributário e mesmo às garantias materiais do
contribuinte, ambos sujeitos ao devido processo material (substantive due process), do
que à organização e funcionamento de um órgão federal. E inexiste reserva de iniciativa
do Chefe do Poder Executivo para dispor sobre matéria tributária, a não ser no caso dos
hoje inexistentes territórios (art. 61, § 1º, II, da CF). De modo semelhante, eventual
legitimidade do voto de qualidade não significa sua obrigatoriedade. O Poder
Legislativo tem competência e legitimidade para dispor sobre o modo de tomada de
decisões no curso da verificação de legalidade.
Digna de nota é a ausência de maior ênfase nos efeitos deletérios ao Erário. Isso não
significa que o impacto econômico não será levado em consideração no julgamento.
Assim como os verdadeiros critérios decisórios do julgador nem sempre são explícitos
nos respectivos votos, muitos argumentos são levados ao conhecimento da Corte por
vias que não são registradas nos autos, como ocorre quando há divulgação pela
imprensa, por audiências ou por memoriais aos quais não se dá publicidade.
De qualquer modo, a discussão centralizada no aspecto formal ofusca um debate mais
importante, acerca do modelo adotado pelo Carf.
O modelo atualmente adotado pelo Carf para controle da validade do crédito tributário
tem virtudes e vícios, cujos aprimoramento e correção, respectivamente, ficam
prejudicados pelo antagonismo irredutível praticado pelos extremos. Um exemplo dessa
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escalada armamentista é a reação ao fim do voto de qualidade, patrocinada pela
Emenda 53 à MP 952/2020, que pretende acabar com a composição paritária do órgão
administrativo de julgamento.
Referida emenda parte de uma preocupação legítima, que é o modo como os
conselheiros representantes dos contribuintes são escolhidos, para construir uma
presunção lombrosiana, a de que todo conselheiro indicado é potencialmente um
patrocinador de interesses privados ilícitos. O argumento é perigoso, pois ele pode ser
aplicado com a mesma intensidade ao critério de escolha dos representantes do Fisco.
Afinal, como expôs Upton Sinclair, “é muito difícil fazer uma pessoa entender algo,
quando o salário dela depende justamente de que ela não o entenda”. Falta aos
representantes fiscais as garantias próprias da magistratura, como irredutibilidade de
vencimentos, inamovibilidade e vitaliciedade, de modo que doutrinação ideológica,
temor de retaliações funcionais ou simples interesse remuneratório da categoria se
tornariam os mesmos tipos de incentivos ao desvio funcional que a emenda identifica
na genética dos contribuintes.
Ao colocar linearmente em dúvida a lisura dos representantes dos contribuintes tão somente por serem “dos contribuintes”, a Emenda 53 dá margem ao questionamento da
isenção dos julgadores fiscais, o que é um absurdo. Um outro problema é o argumento
baseado na perda de arrecadação. Se a arrecadação é contrária ao Direito, cabe tanto à
administração quanto ao Judiciário reconhecer a invalidade. A cobrança de tributos
indevidos, como um bem em si mesmo, apenas porque tais valores seriam gastos em
prol da coletividade, é uma falácia: primeiro, pois não há garantia de que os valores
destinem-se ao bem comum; segundo, mas não menos importante, é porque talvez não
valha a pena pagar por uma civilização fundada na quebra pontual e idiossincrática de
suas próprias leis.
Desde a deflagração da Operação Zelotes, o Estado já tomou algumas medidas para
aprimorar o processo seletivo dos conselheiros do Carf, como a criação de um comitê.
Não podemos partir da presunção de que esse comitê esteja funcionando mal. De
qualquer modo, esse mecanismo pode ser aprimorado e somado a outros. Não faltam
boas cabeças pensantes no campo tributário, como revelam as propostas de reforma
atualmente em discussão no Congresso.
Nesses tempos de aumento de hostilidades e agastamento, há fundado risco de que as
posições extremadas que vêm sendo adotadas por ambos os lados elimine as virtudes
do Carf, sem resolver quaisquer de seus vícios.
O Carf deve ser aprimorado e valorizado. Sua força está nas discussões técnicas, cuja
profundidade é difícil de ser alcançada sem uma Justiça especializada, ainda que com
características híbridas (como ocorre no modelo semelhante ao do Tax Court, sujeito às
próprias vantagens e desvantagens). Se há problemas no recrutamento dos conselheiros
dos contribuintes, em razão da baixa remuneração ou por qualquer outro motivo, há
soluções menos drásticas. Se tememos pela isenção dos julgadores de quaisquer dos
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lados, talvez devêssemos pensar em tornar o Carf um tribunal com competência e
garantias próprias do Judiciário, ainda que formalmente na estrutura da
Administração.
Se o consenso entre partes irredutíveis em seus interesses individuais é improvável,
talvez reste a possibilidade de compromisso por um modelo que assegure a isenção e o
rigor técnico dos julgamentos, cujos processo e procedimento legitimem os resultados.

*Cesar L. de O. Janoti, mestrando em Ciências Jurídicas. Advogado
especialista em Direito e Processo Penal. Professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista. Foi assessor de
ministro do Supremo Tribunal Federal e secretário parlamentar da Câmara
dos Deputados
Gilberto Frigo Jr., mestrando em Direito Tributário. Especialista em
Direito Tributário. Advogado em São Paulo
Thiago B. Sorrentino, mestre em Direito Tributário e doutorando em
Ciências Jurídicas. Professor do IBMEC/DF e da Amagis/DF. Foi assessor
de ministros do Supremo Tribunal Federal por uma década. Coautor do
livro Responsabilidade Tributária Patrimonial, Penal e Trabalhista do
Administrador de Pessoa Jurídica

 

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